Brasil,
27 de agosto de 2099.
Caros
amigos do passado,
Sim,
algumas tecnologias mudaram e é possível enviar cartas para o passado – mas não
me perguntem por que não fizeram isso por meio digital e as encomendas são
enviadas em envelopes físicos, talvez seja influência das companhias de
correios e telégrafos para que não fiquem obsoletas. Mas não foi para contar dessas mudanças que
eu lhes escrevi, mas sim para falar sobre outra no ramo do futebol.
É
fato que algumas coisas continuam, senão iguais, muito parecidas: a FIFA
continua sendo investigada (desde o início do século XXI), Ricardo Teixeira
Neto está sendo muito cotado para substituir João Havelange III no comando da
CBF e o futebol olímpico ainda não nos trouxe o ouro (embora esteja rolando um
comentário que se de fato levarmos a medalha dourada nos jogos de Nouméa, na
Nova Caledônia, no ano que vem, o futebol finalmente será extinto das
Olimpíadas). Mas algo mudou internamente no futebol, especificamente no futebol
brasileiro. Hoje digo, orgulhosamente, que resolvemos o problema dos conflitos
e agressões entre torcedores, bem como a depredação do patrimônio público e
privado em decorrência dos mesmos.
Acredito
que poderíamos ter resolvido o problema um pouco antes, para isso teríamos que
ter tomado uma postura um pouco diferente ao longo dos anos, mas essa nossa
mentalidade vem do tempo de vocês e, logo, não foi nossa realização. Talvez,
caso tivesse havido a preocupação em entender e observar a relação quase
intrínseca entre violência e futebol (ao qual poderíamos inclusive chamar de
“encenação bélica moderna”) e não tentar impor sobre ele um modelo idealizado,
o resultado pudesse ter vindo antes. Se houvesse o olhar para o fato de que situações que envolvem grandes multidões demandam controle e não choque, esse cenário
poderia ter se alterado em um momento anterior. Talvez, se tivéssemos parado de tentar terceirizar o problema, falando apenas em "invasão" ou "bandidos infiltrados". Mas isso não aconteceu, e pouco
importa, pois nós – como já disse – pusemos um fim a isso tudo!
Começou no tempo de vocês. Se me lembro, pelos
registros históricos aos quais tive acesso, foi no fim dos anos 90, ou no
início da primeira década do terceiro milênio, que a onda de proibições
começou. Primeiro foram as bandeiras. Era um risco deixar que um cidadão
transitasse por dentro de um estádio armado com um instrumento que colocava em
risco a vida dos demais como aquelas bandeiras e seus mastros. Depois foram os
rádios, até então companheiros fiéis dos torcedores de arquibancadas – o que
pouco importava naquela altura, já que o termo arquibancada cairia em desuso
após a inauguração de nossas modernas arenas. Mas as pessoas insistiam em usar
tudo o que dispunham como armas, e tivemos que proibir também os guarda-chuvas.
Em nome de sua própria segurança as pessoas deveriam se molhar.
Houve
um episódio em um Cruzeiro x Atlético-MG, acho que em 2012, onde comida e copos
d’água foram arremessados no gramado. Foi a deixa que faltava. Alguns anos
depois seria proibido o comércio de alimentos dentro dos estádios. Comer só
antes e depois das partidas, ou em um dos refinadíssimos camarotes, pois o
risco de uma chuva de coxinhas e copos plásticos inundando nossos estádios era
inadmissível. O torcedor ainda tinha o direito de tomar água, mas apenas na pia
dos banheiros, e ela não tinha mais torneiras. Afinal de contas, imagine o
estrago de uma torneirada na cabeça.
Após isso, ainda chumbamos todas as cadeiras, para que não fossem arrancadas e
jogadas, mas as pessoas insistiam em arremessar seus celulares. Fácil.
Impedimos a entrada de celulares nos estádios. O pessoal da telefonia pública
até nos agradeceria, pois seria uma volta e tanto para os orelhões, mas
convenhamos que o telefones públicos também são muito perigosos para permanecer
em nossas arenas multiuso e, portanto, os descartamos.
Parecia
tudo muito bem até que, por volta da metade do século, as pessoas começaram a
usar as chaves dos carros e de suas casas como armas dentro de nossos estádios.
Tomamos a medida lógica de proibi-las de entrar com suas chaves, mesmo que isso
representasse a impossibilidade de entrar em casa depois em alguns casos ou de
ir para o estádio em seus carros. Isso se mostrou efetivo durante um tempo, mas
poucos anos depois o trânsito de nossas principais cidades parou e tudo
foi por água abaixo. Já bem próximos de meu tempo, resolvemos impedir também a
entrada de torcedores com seus sapatos. Vejam só, que mesmo sem mais nada para
lançar dentro dos gramados, o povo preferia ir descalço para casa e colocar
mais um item na lista negra dos estádios brasileiros. Logo após foram os
cintos, que poderiam representar uma grande ameaça causando enforcamentos. Em
seguida as camisas e calças, bem como vestidos e saias, que poderiam
facilmente ser usados para sufocar alguém ou se acumularem nos gramados após um
ato de revolta.
É
verdade, embora eu sinta alguma vergonha de contar isso aos amigos. Durante
alguns anos da década de 90 dos anos 2000, o público dos estádios brasileiros
ia nu assistir aos jogos. Criamos até um sistema, inovador e caríssimo, para
que as roupas íntimas fossem armazenadas na entrada do estádio e só retiradas
após o término do jogo. Gerou constrangimentos, mas era o que precisava ser
feito. Porém, passado o frisson da medida e uma limitação de idade mínima para
entrada nos campos de futebol, o povo, sempre ele, adotou o meio mais primitivo
para se digladiar nos palcos futebolísticos. Socos e pontapés eram comuns,
cotoveladas e cabeçadas também, cenas animalescas se repetiam semana após
semana. Mas não pense que nos prostramos diante desse grande desafio. Tomamos a
medida definitiva, aquela que solucionou de vez todos nossos problemas e a que
me motivou a escrever essa correspondência retro-temporal: impedimos o ser
humano de entrar nos estádios de futebol do Brasil. O humano foi banido de vez
da plateia do espetáculo de nosso ludopédio. Conseguimos!
Com
carinho,
Comandante
Genérico da Almeida.
Esse texto é sensacional!
ResponderExcluir\O/
ExcluirFico feliz de ler isso. Ainda mais do cara que escreve um texto gigante com o tema "eu não sei escrever textos longos". hahahhaa